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O autismo no cinema e na TV: problemas de representatividade

Atualizado: 30 de mai. de 2023


Mulher careca com uma adolescente de cabelos longos e tiara de borboleta, apoiada no seu peito e sendo abraçada. Ambas são brancas, olhos claros, cabelos castanhos.
A personagem Zu (Kate Hudson) abraçando Music (Maddie Ziegler) no filme 'Music', de Sia | Foto: Divulgação

O que é ser autista?


Se você não possui essa característica e também não conhece ninguém que a tenha, é possível que muitas coisas que você saiba sobre esse tema tenham vindo de relatos de terceiros ou obras de ficção. Se você está no espectro autista, têm muita consciência dessa realidade, mas vive em um mundo repleto de gente que não tem e não age da forma correta por conta disso.


Abril é o mês oficial de conscientização sobre o autismo e pensando na importância do tema, falamos um pouco sobre a representação dessas pessoas em filmes e séries. Para muitos, essa é a forma primária de informação sobre o tópico, o que torna fundamental discutir o modo como a retratação de autistas nessas obras pode criar visões prejudiciais sobre o transtorno.


Com o objetivo de respeitar o protagonismo autista na discussão da pauta, conversamos com ativistas autistas e produtores de conteúdo sobre autismo:


  • Alpin Montenegro, (ela/dela), 32 anos, Santa Maria (RS), produtora de conteúdo com foco em autismo em adultos;

  • Érin Coswig, (elu/ele), 20 anos, Pelotas (RS), técnico em Comunicação Visual e estudante de Psicologia;

  • Marin Blanco, (elu/ela) 20 anos, Brasília (DF), estudante de Línguas Estrangeiras Aplicadas.


Controvérsias recentes sobre problemas antigos


Dirigido pela cantora Sia, o filme ‘Music’ causou muita polêmica nos últimos meses. A forma como o longa aborda o tema através da protagonista, uma garota autista não-verbal, gerou muitas críticas por parte da comunidade autista. As discussões sobre o tema tomaram uma proporção talvez nunca antes vista, mas os problemas de representação desse grupo social já persistem há décadas.


Uma das principais reclamações é o chamado cripface, que é a interpretação de personagens com deficiência por atores que não a possuem. Nesse caso, a atriz e dançarina Maddie Ziegler, que não é autista, foi escolhida por Sia para interpretar Music, a personagem principal. Infelizmente, essa é uma prática dominante na indústria audiovisual, que dá poucas oportunidades a atores que têm uma deficiência.


A quantidade de papéis com essas características por si só já é pequena: segundo estudo do GLAAD, na temporada de TV de 2020 e 2021, apenas 3,5% dos personagens principais de séries televisivas possuíam alguma deficiência. Historicamente, a maioria desses papéis acaba indo para pessoas que não têm deficiência, o que tira as já escassas oportunidades de atores PCDs trabalharem.


Casey, personagem da série Atypical, abraça o irmão Sam, autista. Ele está usando um fone de ouvido.
O ator Keir Gilchrist interpreta Sam, personagem principal da série Atypical | Foto: Divulgação

Na TV, alguns dos exemplos mais conhecidos de cripface com pessoas autistas são as séries ‘The Good Doctor’ e ‘Atypical’, além das telenovelas brasileiras ‘Amor à Vida’ e ‘Malhação - Viva a Diferença’. Já no cinema, existem vários exemplos, como os filmes ‘Rain Man’ e ‘P.S. Eu te Amo’. “O que era para trazer representatividade acaba fazendo o oposto disso”, afirmou Érin.


Além disso, atores neurotípicos, ou seja, que não possuem condições neurológicas atípicas, como autismo ou TDAH, não têm a vivência necessária para reproduzir de forma autêntica o comportamento de um autista. Isso tende a gerar uma interpretação repleta de características exageradas e estereotipadas, como foi o caso de Ziegler em ‘Music’, cuja performance foi descrita por Alpin Montenegro como “capacitista” e “bastante desconfortável de assistir”.


O capacitismo nas produções


Uma das principais motivações da indústria para não contratar autores autistas parece ser justamente o capacitismo, que é o preconceito contra pessoas com deficiência. Ele se manifesta de diversas formas, algumas até disfarçadas de “cuidado”, como a visão da PCD como alguém incapaz de realizar certas ações e ter determinados hábitos. Isso contraria o ideal de “nada sobre nós sem nós”, defendido por diversas comunidades de pessoas com deficiência.


No caso de ‘Music’, isso ficou evidente a partir das respostas de Sia aos questionamentos. Ela afirmou que uma menina autista cotada para o papel achou a experiência desagradável, o que levou à decisão de escalar Maddie. Segundo a cantora, colocar uma pessoa autista no papel seria 'cruel'. "O cripface mostra o capacitismo, até o ponto de admitirem que [a escalação de um neurotípico] é pelo simples preconceito de que 'um autista não é capaz de atuar'", afirmou Marin Blanco.


As declarações de Sia também demonstram desconhecimento sobre a natureza do autismo. Existem diversas formas de manifestação do TEA (Transtorno do Espectro Autista), que se apresentam em três níveis de necessidade de apoio. O fato de uma pessoa autista ter achado estressante atuar no filme não significa que todas as outras achariam. Muitos atores autistas, inclusive, chegaram a se pronunciar no Twitter, afirmando que gostariam de ter sido chamados para participar do longa.


Além disso, é possível fazer adaptações ao ambiente e à rotina de gravação para torná-lo mais confortável para atores autistas, conversando com eles sobre suas necessidades. "Acredito que a matéria-prima para se fazer um bom trabalho é a sensibilidade somada ao estudo e ao diálogo. Acredito que esses três itens faltaram para que 'Music' e tantos outros filmes tivessem sido respeitosos conosco", explicou Alpin, em uma opinião compartilhada por muitos outros autistas. Existem algumas ações que podem ser empregadas para facilitar o conforto desses atores. Segundo Érin,


É sempre importante ter muita paciência ao lidar com pessoas autistas, saber respeitar o tempo da pessoa para se preparar e fazer as coisas, entender quando ela não está se sentindo bem e dar tempo e espaço a ela. Outra questão importante é a adaptação sensorial, é sempre bom expor a pessoa autista o menos possível a muitos estímulos, principalmente sonoros e visuais.

Um dos bons (e raros) exemplos de representatividade apontados pelos entrevistados é a série ‘Everything’s Gonna Be Okay’, do canal americano Freeform. Kayla Cromer, que interpreta Matilda na obra, é a primeira pessoa autista a interpretar uma personagem principal de série de TV que também é autista. A personagem Drea, interpretada por Lilian Carrier, também possui esse tipo de representação.


Uma menina loira usando óculos, branca, segurando uma blusa e uma calça
Kayla Cromer na série 'Everything's Gonna be Okay' | Foto: Mitch Haaseth/Freeform

Segundo dados de 2016 da Ruderman Family Foundation, que realiza esforços para inclusão de PCDs, apenas 5% dos personagens de TV com essas características são interpretados por PCDs. Nos cinemas, a situação não é diferente. Está mais do que na hora de atores com deficiência, incluindo autistas, poderem receber as oportunidades que merecem e passar ao público a realidade do autismo, indo além da insuficiência atual.


Os estereótipos do autista nas telas: do “PCD mágico” ao “autista genial”


Os problemas de ‘Music’ e de muitos outros filmes e séries que abordam o autismo infelizmente vão além do cripface. Muitos são os estereótipos e limitações da representação no próprio roteiro. No caso do filme de Sia, a história segue bastante a tendência recorrente chamada o ‘PCD mágico’ (tradução livre de ‘magical cripple’). De acordo com a definição de uma matéria do site The Conversation, “o ‘PCD mágico’ não aprende nada e não cresce como pessoa porque ele já é [visto como] ‘iluminado’".


Menina de cabelos claros, usando uma trança, roupa verde limão colada no corpo, sorrindo de forma exagerada e com as mãos levantadas
Maddie Ziegler no filme 'Music' | Foto: Vertical Entertainment

A protagonista autista não-verbal é apresentada como alguém “especial” e “mágico”, em uma perspectiva idealizada do que significa ser autista. Além disso, Music não possui um arco narrativo próprio e funciona muito mais como uma motivação ambulante para sua irmã neurotípica Zu (Kate Hudson) mudar de vida. Essa é uma tendência vista também em personagens de outras minorias sociais em filmes e séries de TV, como as pessoas negras, no estereótipo chamado “Negro Mágico”.


Esse é só um dos clichês a quais personagens autistas ou pessoas com deficiência em geral são submetidos no audiovisual. Eles também são frequentemente apresentados como infantilizados ou maléficos, e há ainda casos onde o personagem tem diversas características autistas, mas não é diagnosticado como sendo parte do espectro, o que acaba apagando a representação. Alguns dos exemplos mais recentes são Abed Nadir, de ‘Community’; Wilson Fisk, de ‘Demolidor’; Temperance Brennan, de ‘Bones; e Amélie Poulain, de ‘O Fabuloso Destino de Amélie Poulain’.


Um outro estereótipo bastante presente guarda algumas semelhanças com o conceito de “PCD Mágico”: o clichê do autista genial (tradução livre de ‘autistic savant’). Ele foi inaugurado pelo personagem Ray Babbitt, do filme ‘Rain Main’, um dos primeiros a ganhar notoriedade por abordar o tema. Esse tipo de personagem, além do autismo, também possui savantismo (ou Síndrome de Savant) um quadro psicológico que alia capacidade intelectual acima da média com dificuldades de relacionamento.


Homem branco, magro, cabelos castanhos, usando o computador
Sheldon, de The Big Bang Theory: o 'autista genial' | Foto: Divulgação

Essa retratação se repete em séries bastante populares como ‘The Good Doctor’, ‘Atypical’ e ‘The Big Bang Theory’. Ela acaba por fixar no imaginário popular uma visão bastante específica do que significa ser autista que não corresponde à realidade: estima-se que apenas dois a cada 10 mil autistas possuem savantismo e 50% das pessoas que tem essa característica nem sequer são autistas.


Uma problemática recorrente é que o 'personagem autista padrão' costuma também costuma ser homem, branco, heterossexual e cisgênero. Isso se deve ao fato do autismo ser mais visto como uma condição masculina e branca. Pessoas designadas meninas ao nascer são diagnosticadas como autistas com muito menos frequência do que as que são designadas homens. Essa é uma realidade vista também entre pessoas negras, que por serem vistas como mais agressivas, costumam ser mais associadas ao Transtorno Desafiador de Oposição (TOD).


Outras características bastante específicas também fazem parte do clichê autista na ficção. "Os personagens parecem ter uma fala meio mecanizada, pouco natural. Não que não seja algo que pode acontecer, muitas pessoas autistas realmente podem ter uma fala assim, mas seria importante se as obras buscassem representar o que se encontra fora do estereótipo pra variar, porque autistas que não se encaixam no estereótipo do autismo existem", disse Érin. Segundo ele, essa tendência "cria uma visão limitada sobre o autismo na mente das pessoas que não o possuem e também não oferece oportunidades de identificação por parte de muitos autistas".


Entretanto, alguns personagens têm derrubado essa barreira, apresentando novas perspectivas do que é ser autista. A série sul-coreana ‘It's Okay Not To Be Okay’ traz o personagem Moon Sang-tae, um dos raros exemplos de personagem autista não-branco. As já citadas Matilda e Drea de ‘Everything’s Gonna Be Okay’ também são umas das pouquíssimas retratações de mulheres autistas LGBT.


Desenho de uma menina com cabelo roxo, amarrado, olhando para cima e sorrindo
Entrapta, personagem de 'She-Ra e as Princesas do Poder', é autista | Foto: Divulgação

Nas animações, a personagem Entrapta de ‘She-Ra e as Princesas do Poder’ (Netflix), foi escrita como autista, mas é bastante extrovertida, o que foge do estereótipo predominante. Já o curta da Pixar ‘Fitas’, disponível no Disney+, tem uma protagonista não-verbal. As duas personagens também são pessoas não-brancas.


Caminhos para o futuro


É fundamental que as indústrias do cinema e da TV tenham prestado atenção a toda a controvérsia retratada em ‘Music’ para repensar o modo como tratam o autismo na frente e por trás das câmeras. Nossos colaboradores destacam a importância de dar espaço a autistas. "Temos muitos atores excelentes que são autistas e só descobriram na fase adulta, e muitos até mesmo na terceira idade, como Anthony Hopkins, por exemplo. Então talento não é algo que nos falta quando gostamos e nos dedicamos a algo", afirma Alpin.


Homem velho usando roupão vermelho
O ator Anthony Hopkins é autista. Na foto, ele no longa 'Meu Pai', indicado a melhor filme no Oscar 2021 | Foto: Divulgação

Não existem restrições a pessoas neurotípicas contarem histórias de pessoas autistas, mas é extremamente necessário que isso seja feito com participação direta de pessoas no espectro, pois a vivência e experiência autista é fundamental para garantir autenticidade e respeito na representação. Por isso, também é fundamental que roteiristas, diretores e atores autistas recebam oportunidades. Isso é importante tanto para contar histórias como as suas quanto para contar as histórias que quiserem, pois os interesses de pessoas com TEA vão muito além do transtorno, tanto como consumidoras, quanto produtoras de conteúdo.


Que essa discussão possa ir além do Dia de Conscientização do Autismo e se torne lugar comum. Se você é neurotípico, assista os filmes indicados como bons exemplos nessa matéria, siga produtores de conteúdo autistas e acompanhe o trabalho de organizações como a AMA (Associação de Amigos do Autista). Nunca é demais aprendermos sobre pessoas visando conhecer a verdade e proporcionar a melhor convivência possível para elas.


 

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