Jaloo encerra trilogia de álbuns e expõe lado mais obscuro de si em MAU: “faz parte de mim”
Por Lívia Maria, em especial para TAG Revista

No último sábado (7), a artista paraense Jaloo subiu ao palco do Festival Coquetel Molotov, no Recife, para apresentar o show de seu mais novo álbum, MAU (2023). Com uma plateia lotada e engajada, cantando alto todos os hits de uma carreira que iniciou há quase 10 anos, Jaloo trouxe à tona a energia visceral de um disco que, segundo ela mesma, é “extremamente íntimo”.
MAU é o terceiro e último capítulo de uma trilogia iniciada em 2015, junto com
#1, onde Jaloo explorou uma figura andrógina, quase etérea, “um anjo sem sexo”, como ela diz, e continuou com ft. (pt. 1) (2019), um trabalho que exaltava a masculinidade. Agora, o feminino é celebrado em sua complexidade, com canções que transitam entre a ironia, o humor e a vulnerabilidade. O resultado é uma obra tão íntima quanto dançante, onde a artista reúne sonoridades como phonk, hyperpop, ska e calypso em uma ode à sua própria liberdade.
“Eu lembro de falar para o Miranda que queria ser mais masculina no segundo e, no terceiro, assumir uma figura feminina”, revela, em entrevista à TAG Revista, citando o produtor musical e músico Carlos Eduardo Miranda, que atuou como diretor artístico no seu primeiro álbum.

A ideia de explorar essa tríade artisticamente não aconteceu por acaso: Jaloo reflete que sempre demonstrou certo grau de interesse pela possibilidade de transitar entre diferentes performances de gênero, explorando tanto os signos associados ao masculino, quanto ao feminino, na sua vida. A trilogia de álbuns, então, aparece como algo que está além de um mero exercício artístico. Mais do que qualquer rótulo, Jaloo se vê como um ser mutante: surgiu andrógina, adotou cabelos mais longos, assumiu a cabeça raspada e não parou por aí. As mudanças poderiam ser apenas estéticas, mas nenhum movimento é solitário.
“Tudo faz parte de um ciclo, de um momento e do meu processo criativo. Vivo em constante movimento”, comenta a artista. “No começo as pessoas falavam de eu ser uma pessoa não-binária, mas eu acho que eu sou multigênero, mais do que não-binária. Eu acho que eu gosto de todos eles e eu tenho eles comigo. E aí eu celebrei cada um deles, desde a ausência até os outros dois, e estou caminhando para uma mistura de tudo. Eu não tenho paciência pra ser mulherzinha e, ao mesmo tempo, não tenho paciência pra ser homem. Então os dois me fascinam muito”, afirma, refletindo sobre as descobertas que marcaram seu percurso.
Abraçando o obscuro com ironia
Com uma mistura de ironia e humor característicos da artista, MAU marca um momento de transformação e amadurecimento na trajetória de Jaloo, consolidando-a como uma das vozes mais autênticas da música brasileira atual. Essa jornada pessoal aparece nas letras de músicas como “A verdade é que a cidade vai me matar”, onde ela assume as próprias vulnerabilidades com uma sinceridade cortante.
“MAU é a minha fase mais madura. É uma fase que já perdeu bastante, mas que é mais grata pelo que conseguiu. E aí nesse lugar de menina aqui que aparenta ser inocente, mas não é, eu quero fazer as pazes com a parte mais obscura da gente, que a gente nega... Eu a neguei por anos e aí nesses últimos tempos eu estou cada vez mais próxima dela e queria mostrar isso”, explica ao descrever essa nova etapa da sua carreira. “Já tem mais o lugar de negação que talvez eu tivesse nos discos anteriores. Hoje em dia eu encaro de frente tudo isso”, conclui.
Apesar de abordar temas densos, como melancolia, desejo sexual e vícios, o álbum também encontra espaço para o humor e a leveza através das letras e da sonoridade eletrônica que a artista apresenta. É sobre fazer música eletrônica do jeito que ela mesma gosta, com suas próprias ferramentas e habilidades conquistadas nos últimos anos.
“MAU tem uma sonoridade muito ‘club’, e isso veio de uma fase em que eu ia para os clubes só para dançar, a gente sempre quer algo mais né, quer sexo, quer conhecer gente nova, mas eu lembro de ir só pra dançar e isso foi muito bom. Essa experiência me abriu portas sonoras e trouxe essa energia para o disco”, explica a artista.
Liberdade criativa: Jaloo por inteiro

Com o bom humor característico da artista, que canta, arranja, produz e compõe todas as faixas, Jaloo sublinha que MAU é um projeto totalmente solo, desde a composição até a produção. Para ela, foi o momento de assumir seu potencial criativo por completo. “Eu já tinha feito muita coisa nos outros [discos], mas nunca tinha feito tudo. Foi o momento de dizer: eu consigo, eu dou conta e vou fazer”, explica.
Essa autonomia se reflete no ímpeto da artista em se expor sem reservas. Para ela, a arte é um espaço para exorcizar e acolher também seus sentimentos e a composição funciona como válvula para extravasar tudo. “Quanto mais me exponho, mais feliz fico. É como se, ao falar sobre algo, aquilo deixasse de ser só meu. Começa a pertencer ao mundo e não só a mim, aqui dentro”, conta.
O resultado é um trabalho visceral, carregado em cada detalhe das marcas de quem é Jaloo, se conectando com seu momento atual de fazer as pazes com todas as suas partes. De, além de exorcizar seus problemas e sentimentos, também se orgulhar deles, reconhecendo que fazem parte de quem é. Essa sinceridade não passa despercebida pelo público, que estabelece com a artista uma conexão única. “Eu amo o meu público. A partir da pandemia eu revi muita coisa e uma coisa que eu decidi foi ser o mais sincera possível com ele. Sobre o que eu estou sentindo, sobre a forma como eu me relaciono, nossa relação é muito horizontal, como se a gente tivesse todo mundo naquele palco”, reflete.
Se com MAU, Jaloo não só reforça sua identidade como uma artista multifacetada, mas também convida o público a abraçar suas próprias complexidades, no palco do Coquetel Molotov, essa mensagem encontrou eco em um público apaixonado, que dançou e vibrou com cada batida de um álbum que celebra o feminino, o obscuro e, acima de tudo, a liberdade de ser.
“Eu não consigo me pôr muito no lugar de diva, por mais que exista essa nomenclatura. Eu gosto de falar de problemas técnicos, por exemplo, e isso acaba trazendo o público pro palco, para o show e construindo ele junto comigo. Acho que é por isso que tem tanta entrega e conexão”, explica.
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Com uma atitude mais madura, livre e criativa do que nunca, Jaloo não apenas conclui a trilogia que pautou sua expressão artística até agora, mas também abre portas para um futuro que celebra a multiplicidade de ser, viver e sentir. “Eu lembro que quando eu comecei a transição eu estava caminhando muito para emular ou para performar uma feminilidade, em questão de roupa, maquiagem, eu estava muito preocupada com isso.
E aí teve um dado momento que eu pensei ‘eu tô fazendo isso por mim ou é pra algum ou todos os homens?’”, questiona a artista, que confessa estar de “saco cheio” das obrigações em torno da performance de gênero: “estou questionando tudo isso, tanto é que na música Mau eu falo do pau com muito orgulho, um lugar que foi colocado pros travestis de esconder”.
Encerrando esse ciclo, Jaloo aponta para um caminho de coragem de quem se recria a cada batida. Se MAU é o fim, ele também anuncia um novo começo para Jaloo. “Cada pessoa trans tem a sua vivência com o seu corpo, mas eu tenho voz, tenho orgulho e quero muito mostrar isso também”, finaliza.

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