‘Os Enforcados’ mistura bem a tragédia shakespeariana com a contravenção no Rio de Janeiro
- Rayane Domingos
- 14 de ago.
- 4 min de leitura
Novo filme de Fernando Coimbra tem o jogo do bicho como plano de fundo para fazer um retrato violento da guerra por dinheiro e poder

"Estagnação. Carta que sugere a necessidade de reavaliar situações e mudar a forma como você as vê, antes de tomar decisões", esse é um resumo bem básico do significado de uma carta do tarot que pode falar muito sobre o nosso individual ou sobre as situações da vida. Essa ideia lançada logo no começo do filme, que parece bem mística, é o que rege Os Enforcados, longa com direção de Fernando Coimbra.
Estrelado de forma brilhante por Leandra Leal e Irandhir Santos, o filme conta a história do casal Regina e Valério, que estão de volta ao Rio de Janeiro após um tempo fora do Brasil. Ele é herdeiro do jogo do bicho e vive da renda dada pelo tio, que ficou responsável pela administração dos negócios após a morte do irmão gêmeo. Já ela se mostra uma típica dondoca que foi criada para ser dona do lar e ter um bom casamento, leia-se com um homem rico.
Enfrentando uma grande reforma na casa, Valério conta que não conseguirá dar prosseguimento à cozinha dos sonhos da mulher porque o dinheiro não estava sendo suficiente. Regina não entende o motivo disso estar acontecendo, visto que jogo do bicho dá muito dinheiro. Um dia, eles armam um plano, teoricamente perfeito, de matar o tio para que ele assumisse os negócios da família. Mas a partir daí, o casal se envolve em uma escalada de violência e brutalidade que parece não ter fim.
"A pessoa que está desesperada, ela bebe, ela reza e ela joga"

Em uma primeira olhada, é até natural pensar que o filme é "mais uma produção que fala sobre o jogo do bicho", principalmente após o boom de informações sobre a contravenção no Rio de Janeiro com o lançamento do documentário Vale o Escrito. Mas no decorrer da história, essa ideia vai sendo quebrada porque a perspectiva da história é diferente.
A título de informação, Coimbra confirmou em entrevistas que escreveu o roteiro do longa antes mesmo da produção do Globoplay estrear. Cito o documentário nesta crítica porque talvez se o filme tivesse sido lançado antes, é muito provável que metade dos espectadores achasse que o diretor viajou um pouco na história. O roteiro mostra um mundo bem cruel, mas a realidade já se mostrou bem pior.
Com inspiração em 'Macbeth' de William Shakespeare, o filme vai se apresentando como uma tragicomédia em crescente, seja dos absurdos cometidos pelos personagens ou pela situação que vai ficando insustentável. O que mais me chama a atenção é que, apesar de ser um filme violento, não há tantas cenas de brutalidade explícita. As situações vão ficando explicitamente subentendidas e o espectador vai imaginando como isso foi ocorrendo.
O roteiro tem boas tiradas cômicas, carregadas de sarcasmo e flerta completamente com o absurdo. Os diálogos são bem construídos e ajudam a entender para onde o diretor quer levar a história, expondo sem medo uma elite que faz qualquer coisa para se manter com dinheiro e no poder. Até mesmo a clássica frase sobre "ser um cidadão de bem" não soa como um clichê manjado.
"Essa obra não acaba nunca"

Utilizando de bons planos sequência, o filme coloca o espectador dentro do filme e vamos observando a crescente loucura do casal e como os dois vão implodindo a relação aos poucos de uma forma completamente abrupta. Talvez me incomode que não há um aprofundamento maior nos dois enquanto indivíduos.
As motivações e sentimentos deles ficam mais subentendidos do que necessariamente explícitos e quando parece que as coisas serão mostradas, tudo volta para a espiral de rapidez. O filme mantém uma boa cadência, mas em alguns momentos fica na gangorra de extremos, entre a corrida e a morosidade.
Achei muito interessante a escolha do diretor de concentrar toda a história em um lugar luxuoso ao invés de ir no caminho simples de colocar o cenário de favela. Apesar do jogo do bicho se concentrar nas comunidades do Rio de Janeiro, o grande foco é mostrar a outra face do negócio, das pessoas que lucram, se aproveitam e fazem qualquer coisa para manter o alto padrão de vida.
A fotografia e o som do filme são um deleite a parte, visto que conseguem transmitir toda a caoticidade presente em todos os espaços, especialmente na vida do casal. Os enquadramentos ajudam a criar esse clima de tensão e suspense em várias cenas, principalmente naquelas que não parece ter nada demais. Como disse, o espectador vai acompanhando e enlouquecendo junto com Regina e Valério.
O elenco faz um bom trabalho, mas o grande destaque do filme vai para as excelentes atuações de Leandra e Irandhir. Quem acompanha o ator sabe que ele é visceral e consegue dar várias camadas para os personagens mais complexos, e não é diferente com Valério. A princípio ele parece ser mais um homem influenciável que não se importa tanto com os negócios da família, mas ao longo da história isso vai se transformando de uma forma urgente e muito bem construída.

O mesmo acontece com Leandra, que para mim é o grande nome do filme. A atriz está esplendorosa do começo ao fim, interpretando uma mulher ambiciosa, passional e ao mesmo tempo muito confusa. Mas a loucura de Regina não dá certezas nem dúvidas ao espectador, que se questiona o tempo todo quem é realmente a vítima dessa história. A gente só quer ver mais, entender mais, olhar mais. E tudo isso é um retrato do quanto ela explora a dubiedade da personagem, nos gestos, nas falas e até no silêncio.
O filme consegue fazer um ótimo retrato moral de uma elite que faz qualquer coisa para se manter no poder e com muito dinheiro, usando a violência como arma principal para garantir os seus "direitos". Sem nem mesmo pensar que isso um dia se voltará contra eles. Coimbra constrói mais um bom thriller em que ficção e realidade se fundem e confundem, fazendo parte um do outro. O fato é que rinocerontes e a carta 'Enforcado' do tarot terão maior atenção e significado após o filme.
Veredito: 4/5
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